sábado, agosto 21, 2004

Ana Sousa Dias

"É carnívoro usar as lágrimas das pessoas"

Ana Sousa Dias, Prémio Gazeta 2004, troca de lugar e senta-se na cadeira do entrevistado. "Não sou capaz". A primeira reacção da jornalista repete-se quando enfrenta novos desafios. A vida contorna-lhe os medos e prova-lhe o contrário. É capaz de fazer entrevistas em televisão, apesar de não gostar de se expor. É capaz de escrever um livro, apesar do seu ritmo de escrita ser instantâneo. E é capaz de recomeçar do zero. "É a parte que gosto mais". Este ano foi-lhe atribuído o Prémio Gazeta. A rir: "Fiquei insuportavelmente orgulhosa". Com o riso que herdou do pai e que verte numa entrevista em que percorre o país, a profissão e o interior. "É bom continuar a sentir o peso das coisas, não ficar cínico em relação à vida".

(Entrevista realizada por Helena Teixeira da Silva no Jornal de Notícias a 21 de Agosto de 2004)

Quem olha para a Ana não imagina que já foi expulsa de um colégio interno...
Fui expulsa do Instituto de Odivelas. Achavam que era subversiva, o que é absurdo porque tinha 14 anos [risos]. Não era coisíssima nenhuma. Entrei para lá com 10 anos; saí a meio do 5.º ano do liceu. Foi antes do 25 de Abril.

Essa suposta subversão reflectia-se em quê?
Descobriram que tinha um livro proibido sobre a guerra do Vietname, do Bertrand Russel. E tinha levado, por ingenuidade, posters do Che Guevara para pintar. Era proibido, mas não era assim tão proibido. Aliás, dizia-se que a PIDE tinha posto a circular aqueles cartazes. Aparecer com coisas subversivas era perigoso porque viam-me como aluna modelo.

Mas já tinha consciência política nessa altura?
Não tinha, de todo. Tinha crescido sob a tutela do meu avô que era anti-fascista, republicano. Eu era visceralmente anti-salazarista, mas era uma coisa quase epidérmica.

Que ideal a conduz à militância do Partido Comunista?
O sonho de um Mundo melhor. Identificava-me com as pessoas de maiores dificuldades. Não vou dizer que era uma consciência de classe, porque não era. Mas preocupava-me os problemas sociais. Isso foi em 1976. Continuo a preocupar-me, embora já não seja militante.

Abandonou nos anos 80. Deixou de se identificar com o PC ou percebeu que podia melhorar o Mundo sem fazer parte de um partido?
Deixei de ter disponibilidade para a militância, e tomei consciência de que o jornalismo não é compatível com a actividade partidária. Afastei-me por desacordo, embora sem nenhuma tragédia ou psico-drama.

Incomoda-a a morte anunciada do Partido Comunista?
Não sei se é morte, na verdade. Neste momento, há uma crise de todos os partidos. Não é só um problema ideológico. Como em todas as organizações, quem chega aos lugares de topo do aparelho são as pessoas cuja maior vantagem é a disponibilidade e a ambição do pequeno poder; nem sempre são as melhores em termos de qualidade humana, profissional, ética. Geralmente, são as pessoas menos bem formadas, menos movidas por ideais. A democracia está a passar uma fase difícil porque há falta de qualidade dos dirigentes partidários.

Ser bisneta de generais, neta e filha de militares influenciou o rigor da sua formação?
Podia até ser ministra e secretária de Estado! [risos] Tinha habilitações para ser secretária de Estado da Defesa ou de antigos combatentes, porque, de facto, além de ser filha e neta sou bisneta e trineta de militares.

Paulo Portas gostaria de saber isso...
Exactamente. É um recado para ele. Não estou disponível, mas tenho habilitações. O meu pai era militar, mas não era militarista. Nem o meu avô, médico militar. Nenhum defendia a disciplina pela disciplina. Não são os princípios militares que me formaram - esses partem de uma ideia de hierarquia, que me incomoda -, são os princípios de humanidade e de respeito.

Diz que deve ao seu avô a pessoa que é hoje. Ensinou-a a arriscar sem ser apanhada. Já foi apanhada?
Isso aplicava-se a actividades clandestinas, arriscar sendo sempre mais esperto do que a polícia. A questão de ser apanhada já não se coloca. Na profissão, nunca fiz batota, nunca menti, enganei ou deturpei informação. Nunca faria isso. Se alguma vez me enganei foi por engano; não intencionalmente.

Escreveu que o seu avô ouvia com os olhos e com as mãos e ficava a saber tudo. Fica com essa sensação nas entrevistas que faz?
Fico a saber mais do que o entrevistado está a dizer. Já me aconteceu contê-los. Às vezes, as pessoas tornam-se vulneráveis e começam a dizer coisas demasiado íntimas. Não temos o direito de expor as pessoas a isso, aproveitando a fraqueza de quem não está habituado a estar em televisão.

Um sentido de protecção...
Sim, mas não paternalista. O jornalista não é uma pessoa a espreitar pelo buraco da fechadura. Há um estilo jornalístico agora, que é o de puxar ao sangue e à lágrima. Não me identifico com isso. É completamente carnívoro aproveitar as lágrimas das pessoas, embora seja um género que as próprias chefias estimulam.

Essa protecção é, por vezes, inversamente proporcional à que demonstra em relação a si, quando começa a falar das suas experiências.
Às vezes resvalo. Não é consciente, mas também tem a ver com o criar intimidade. Isso só pode ser feito num programa como "Por outro lado". Numa entrevista política seria impossível.Tenho 55 minutos e aquele cenário proporciona um ambiente extremamente íntimo e pessoal. Sem fazer jornalismo puro e duro, posso, de vez em quando, passar a barreira. Não devo, mas muitas vezes não controlo.

"Por outro lado" foi um convite de Diana Andringa, em 2001.
Já fazia entrevistas, mas nunca em televisão... Só tinha experiência de imprensa. A Diana já tinha tentado convencer-me a trabalhar com ela. Mas não queria expor-me, achava que não era capaz. Um dia ela disse: "Já estás na grelha, vais substituir a Maria Elisa". Entrei em parafuso. A Maria Elisa tem uma experiência enorme de entrevista de televisão. "Que disparate", pensei. Mas era um contrato só para 13 semanas. Achei que podia arriscar.

O formato do programa é novo ou é uma cópia?
Fui eu que o propus. Entrei na RTP e coloquei as condições: não queria entrevistar as pessoas do costume, e às que já fossem conhecidas, queria fazer entrevistas ao seu lado menos conhecido.A primeira, foi ao psiquiatra José Gameiro, que falou de aviação. Manuel Alegre falou de caça e pesca. O ponto de partida são os hóbis - só depois se fala da profissão.

Entrevistou logo no início António Mega Ferreira, de quem é amiga há longos anos. Os primeiros convidados eram o seu porto seguro?
As primeiras pessoas que convidei eram impossíveis. Mário Cesariny disse-me redondamente que não; Pinto da Costa recusou; António Lobo Antunes disse que nem pensar. Não conhecia pessoalmente o Manuel Alegre e conhecia mais ou menos o José Gameiro. É sintomático que tenha tido um psiquiatra no primeiro programa [risos], ainda por cima com experiência de televisão. É o tal porto seguro, de facto. E o Mega Ferreira, que conhecia bem. Foram três pessoas que me deram grande segurança no arranque. Mas um psiquiatra era especial. Aliás, disse-lhe que se corresse mal, ele tomaria conta do programa. Correu bem. O programa tem sido sucessivamente reposto. Só parou no Verão de 2001. Estava convencida que não ia continuar. Recomeçou graças à Diana Andringa e à Clara Alvarez, que era directora do Canal 2. Actualmente não pára no Verão. Tem a ver com ser 'free-lancer'. Se não fizer programas, não ganho.

Tem noção de que entrevista pessoas que outros vão entrevistar a seguir?
Comecei a perceber isso, mas não me irrita nada. Se há traço comum nas pessoas que tenho entrevistado - devem ser umas 170 em televisão -, é o respeito, não só humano, mas pelo trabalho deles. E a vontade que sejam conhecidas. Houve duas pessoas que entrevistei na rádio e quis levar à televisão: Pedro Tochas, que é imparável; e a fadista Aldina Duarte, que é um fenómeno. É indizível porque é tão especial. Foi uma entrevista de arrepiar. Eu estava comovidíssima.

Mas não é a primeira vez que se abeira das lágrimas. Como é que se controla?
Tento pensar noutra coisa, mas sobretudo ver se a pessoa está a ficar descontrolada. O Miguel Lobo Antunes começou a chorar, quando falou do cancro da mulher. Nesses casos, começo a falar para dar tempo ao entrevistado, e o realizador passa a câmara para mim. Vê-se a pessoa no reflexo, mas perde todo o impacto. Como não sou agressiva e se cria ali um momento muito intimista, as pessoas tendem a ficar à vontade e a contar coisas que provavelmente não contariam. Nesses momentos, estou no fio da navalha.

Já lhe encomendaram entrevistas?
Há pessoas que me pedem. As que insistem, não entrevisto, porque têm um traço que me choca, e contraria, que é o querer aparecer. Talvez seja defeito meu, como não gosto de me expor, choca-me que alguém se queira pôr em bicos de pés. Mas já me aconteceu entrevistar, e com imenso prazer, pessoas que se propuseram. Pessoas muito conhecidas, que não teria lata de convidar. Há quem pense que estou a repetir pessoas porque não há tanta gente para conversas de 55 minutos. E não é verdade. O problema é que em Portugal só se costumam entrevistar as mesmas pessoas.

Há alguém que a morte tenha impedido de entrevistar?
Nunca entrevistei o Mário Castrim, e teria sido óptimo. O pintor Orlando Sá Nogueira estava na lista e - malvado - morreu antes. Maria de Lourdes Pintassilgo também. Morreram sem me dar tempo. Há um único caso de uma pessoa que entrevistei sabendo que ia morrer: o João Amaral. Conheciamo-nos; não eramos íntimos. Nunca falamos da doença. Foi uma situação especialmente tensa e de coisas subentendidas. Seria um voyerismo explorar a proximidade da morte.

Sente que lhe imitam o estilo, que criou uma escola?
Não criei escola nenhuma, limitei-me a ir ao baú da minha experiência profissional buscar o que aprendi com os outros. Se as pessoas agora se sentirem mais à vontade para voltar à contenção que o jornalista deve ter, ainda bem. Se tive algum papel nisso, fico muito orgulhosa. Mas tenho dúvidas que tenha sido eu; é uma questão de bom senso. Acho que se perdeu o bom senso. A figura muito determinante do jornalista prejudica a entrevista.

Sente-se membro da família RTP ou artista convidada?
Não tenho jeito para artista convidada. Estou de fora porque não faço parte da RTP, mas no estúdio faço parte da família. Dou-me naturalmente bem com os técnicos todos. Rui Nunes, o realizador, é o mesmo desde o início, e é muito importante pela contenção, pelo rigor, pela qualidade.

"As fases de arranque são a melhor coisa que há. Achamos todos que somos fantásticos". Ana Sousa Dias assistiu ao nascimento do Diário, do Público, da Expo 98. Desacelerou e tornou-se 'free-lancer'. "Implica um esforço maior, porque contém mais risco".

Como recebeu a distinção do prémio Gazeta, que lhe será entregue no próximo mês?
Foi engraçadíssimo porque não tinha concorrido. Não estava à espera. O mais importante no prémio é o texto que o justifica, que é muito simpático, e muito interessante no momento actual.O júri, quase todo constituído por jornalistas, reconheceu mérito numa coisa contra-corrente. Fiquei babada, insuportavelmente orgulhosa, um horror [risos]. Também por ser 'free-lancer'.Os 'free-lancers' não são bem aceites nos órgãos de informação. É importante que se saiba que o trabalho deles é tão sério, honesto e profissional quanto o dos outros. E implica um esforço muito maior porque contém um risco permanente.

Antes disso, integrou a equipa que fundou o Público.
Tive sorte porque fiz parte de imensos projectos de arranque. No Diário, no Público, na Expo 98. As fases de arranque são o melhor que há, porque estamos todos em estado de graça, achamos que somos fantásticos, temos vontade de fazer coisas diferentes. Quando as coisas começam a entrar em velocidade de cruzeiro deixam de ter a graça que tinham.

Quando foi despedida do Público, em 1997, entendeu o argumento orçamental ou ficou magoada?
Saí zangada com o então director, Vicente, mas já nos reconciliamos. Foi muito duro. Fiquei zangada porque houve desentendimentos que nunca foram esclarecidos. Hoje, como já sou uma rapariga mais crescida, acho que houve equívocos de parte a parte.

Numa entrevista recente, Vicente Jorge Silva disse que gostava de ter um jornal livre, que fosse uma família, uma espécie de regresso às origens. Gostava de voltar a trabalhar com ele?
É fantástico trabalhar com o Vicente! Trabalhar num projecto jornalístico com ele é das coisas mais estimulantes que há. Não é temeroso, não corta as nossas asas, pelo contrário. É sem dúvida nenhuma o jornalista com quem gostei mais de trabalhar. Já tinha trabalhado com ele no Expresso, nos anos 80, na altura em havia chuveiro na redacção. Foi o último ano antes de o Público começar. Saí do Diário para o Expresso, como colaboradora da Revista, a convite do Vicente, que já estava, presumo, a preparar o projecto do Público. Quando saiu fiquei com o Joaquim Vieira, com quem gostei muito de trabalhar. Não tive a parte boa do chuveiro, mas foi uma experiência muito boa.

Ainda faz sentido falar de jornalismo de referência em Portugal?
Ainda faz. Mas é muito irritante. Sofre-se muito a ler jornais, sobretudo para uma pessoa que saiba como é que se faz. Se isso se perder é por responsabilidade não só dos jornalistas, mas sobretudo dos proprietários que dirigem e quiseram ao longo dos últimos anos reduzir despesas e afastar pessoas que são a memória dos jornais. Obviamente tem que se renovar sempre as redacção, mas não se pode perder a experiência dos mais velhos.

Televisão, rádio ou imprensa, em que meio se revê mais?
Imprensa. A escrita é o mais importante. Gosto muito da televisão e do facto de nela estar mais do que aquilo que é dito: os olhares, os gestos, a linguagem corporal toda. Mas a escrita é mais dura. Na televisão, não volto atrás, não posso corrigir. Na escrita podemos trabalhar, corrigir. Na televisão o trabalho é todo prévio, depois no momento há uma grande adrenalina. A escrita é onde me sinto mais pessoa.

O jornalismo é comumente associado à incompatibilidade familiar. Como educa três filhos?
Quando os mais velhos eram pequenos era muito complicado, porque trabalhava em jornais diários. Agora trabalho em casa, é mais fácil. Independentemente daquilo em que os prejudiquei, sei que em termos profissionais prescindi de muita coisa para poder estar presente. E acho que se deve fazer isso, porque eles não voltam a nascer, não voltam a ser pequeninos.

A sua postura em televisão é completamente distinta da sua postura na vida...
Sou despachada, tenho muito sentido de humor, sou bem disposta.Aquela atitude não é uma encenação, mas tem a ver com o facto de ter que ser discreta. Ainda por cima sou loura [risos] e uso caracóis, que é uma heresia em televisão! Ali, estou a ser rigorosamente profissional, discreta portanto. No dia-a- dia sou um bocado disparatada, mas isso, ainda bem, não é?
Confissões

Livro no fim do ano sobre Lisboa
"Tenho o drama dos jornalistas. Gosto de fazer uma coisa, escrevê-la e pronto. Escrever um livro é diferente. A minha primeira reacção em tudo é a de que não sou capaz. Na possibilidade de um livro também". Mas vai escrevê-lo. Estará pronto no final do ano. "É sobre o que mudou nos últimos dez anos em Lisboa, em termos urbanísticos, sociais e culturais".

"Não sei maquilhar-me"
A imagem não está na sua lista de preocupações. "Não tenho jeito nenhum para me vestir. Nunca me pinto, não sei maquilhar-me". Mas aparece sempre de forma irrepreensível. "Coloquei essa condição à RTP, porque sei que em televisão é importante. Disse que precisava de alguém que tratasse da minha imagem, respeitando a minha maneira de ser". Este respeito implica roupagens automaticamente vetadas pela jornalista. "Saltos altos e tailleur não sou eu. Ficaria completamente desconfortável. Uma pessoa deve ter a imagem que corresponde exactamente àquilo que é". Na televisão, Ana Sousa Dias é o que veste? "Sou. Agora há esse equilíbrio".

"Não vivo o que não sinto"
Apaixonou-se pela primeira vez na escola. Pelo som de uma gargalhada. Quase quarenta anos depois, diz que "é importante o descontrole da paixão". No amor é diferente. "É o que vem a seguir, é mais tranquilo. É uma coisa que se aprende: a partilhar e a estar calado. É a parte mais difícil". Divorciou-se três vezes. "Não sou capaz de viver coisas que não sinto".