Olga Roriz
"Não quero vénias, quero verbas"
"É a Pina Baush em versão melhorada", escreveu o "The New York Times" quando Olga Roriz levou uma das suas criações a Nova Iorque. A coreógrafa portuguesa, que anteontem adicionou o prémio Almada à sua lista de galardões, preferia que tivessem sido os alemães a proferir o elogio. Consciente de que abriu um novo caminho para a dança contemporânea, surpreende ao confessar nesta entrevista: "Não gosto do que faço". Mas gosta o público. O ciclo da criadora, que termina hoje no Porto, esteve sempre esgotado, corroborando o presságio do professor que aos 16 anos lhe soprou: "Vais ser uma grande coreógrafa".
"É a Pina Baush em versão melhorada", escreveu o "The New York Times" quando Olga Roriz levou uma das suas criações a Nova Iorque. A coreógrafa portuguesa, que anteontem adicionou o prémio Almada à sua lista de galardões, preferia que tivessem sido os alemães a proferir o elogio. Consciente de que abriu um novo caminho para a dança contemporânea, surpreende ao confessar nesta entrevista: "Não gosto do que faço". Mas gosta o público. O ciclo da criadora, que termina hoje no Porto, esteve sempre esgotado, corroborando o presságio do professor que aos 16 anos lhe soprou: "Vais ser uma grande coreógrafa".
[Entrevista de Helena Teixeira da Silva, publicada no Jornal de Notícias a 31 de Janeiro de 2004, realizada pouco antes de a coreógrafa ter ganho o Prémio Almada]
O que significa o Prémio Almada?
É sempre bom ganhar um prémio; o que vem daí não se sabe muito bem. Fico contente pela Companhia Nacional de Bailado, que me fez o convite para criar "Pedro e Inês". Na minha carreira, espero que não seja, apenas, mais um prémio. Eu não preciso de vénias, preciso de verbas que assegurem as criações dos artistas.
Curiosamente, é o cinema e não a dança a sua área de eleição. Quanto tempo vai demorar a realizar o guião que guarda há oito anos?
Como espectadora, prefiro o cinema. Não há nada melhor. O teatro vem a seguir. A dança aparece no fim. Não gosto muito de dança.Hoje, o artista não quer plantar uma árvore e ter um filho; quer fazer um filme. Também tenho essa vontade. Sempre trabalhei com câmaras, e gosto muito de fotografia. O guião é para um filme sem palavras, uma curta-metragem. Um thriller, só com dois actores, passado no Buçaco. É baseado na vida real de uma pessoa que conheci. Era bailarina e foi queimada em criança. Quero explorar o zoom que o espectador não pode fazer no palco.
É um projecto viável ou será eternamente adiado?
É uma coisa que está sempre a aliciar-me, mas há uma certa impossibilidade.Se não tenho condições para fazer aquilo que tenho que fazer, que é coreografar, pensar em filmes parece-me um bocado irrealista. O Rui Simões (realizador) acha que é um filme muito caro, porque tem muitas mudanças de espaço. Ainda por cima, queria ser eu a realizá-lo, e isso implicaria ter um bom director de fotografia. Precisava de alguém que acreditasse no projecto e lhe desse uma possibilidade.
Na dança, os temas também partem sempre da vida real: morte, violência na relação homem/mulher, solidão, medo...
Percebi que a distância espectador/bailarino não mexia comigo. Queria estar sentada a ver uma pessoa igual a mim, a abordar problemas que eu também tenho. Senti que o público também queria isso. Quando comecei a coreografar na Gulbenkian, chamavam-me "enfant terrible", porque logo na primeira criação, que foi Nina Hagen, expus uma mulher com a problemática de ter três encontros amorosos no mesmo lugar. Havia uma paixão exacerbada e uma violência, não de mau trato, mas de gula do amor. É a assinatura da minha primeira peça e mantenho-a até hoje. É no desconforto, no confronto, que o meu movimento se transforma em espectáculo. Às vezes, perguntam-me porque é que trato mal as pessoas nas peças. Porque as pessoas são mal tratadas, respondo. Mal sabia que, mais tarde, viria a ter uma experiência dessas na minha vida.
"Start and stop again" é justamente a experiência pessoal numa altura em que estava só...
Foi uma altura de descoberta dura, maltratei-me quase, impus-me perder a noção de tempo. Fiquei sem dormir três dias e, desde então, nunca mais usei relógio. Serviu para exorcizar o meu medo da morte, embora já tivesse sido confrontada com a morte do meus pais.
Ainda fica arrepiada com as suas criações?
Não gosto nada do que faço. É-me difícil achar que as coisas estão completamente bem. Encontro sempre erros. Mas tenho uma coisa em mim - a razão da minha permanência -, que é essa sensação de que ainda não cheguei a sítio nenhum. Vou procurando outras coisas. Sou uma criança, gosto de brincar. E isso é bom. É o que faz de mim uma criadora viva. Só há pouco tempo tive noção de que já fiz muita coisa. Se fiz, faz parte do meu corpo, não dá para descolar; não preciso pensar nisso. A minha preocupação é permitir que isso não se coloque à minha frente para que eu tenha campo livre para criar.
Não fica sensibilizada quando lhe dizem o que sentem nas suas coreografias?
Ninguém fala comigo. Sou uma solitária. As pessoas não ligam nenhuma aos criadores. Também sou envergonhada. Saio do espectáculo e vou para casa. Chamam-me snobe por causa disso. Tem a ver com a minha grande dose de insegurança. Talvez não queira confrontar-me com o "não gostei". Mas não é linear. Uma vez, em Coimbra, uma miúda de 20 anos, veio ter comigo para dizer que o "Start and stop again" tinha mudado a vida dela. E isso é precioso.
Após mais de dez anos e cerca de 20 criações realizadas para a Gulbenkian, o que é que a motivou a sair da companhia?
Estava numa situação muito confortável. Dali, poderia ter saído para qualquer companhia de repertório e ganhar imenso dinheiro. Houve quem me dissesse que foi preciso coragem para sair. Mas eu acho que precisaria de coragem para ficar. O que fiz na Gulbenkian foi essencial, devo a isso tudo o que sou agora. Só que precisava fazer outras coisas e surgiu o convite da Companhia de Dança de Lisboa. A saída foi muito orgânica, sem conflitos.
Voltaria a trabalhar numa companhia de repertório?
Não penso nisso. Não há caminhos para trás. Gostava, isso sim, de ter uma companhia do tamanho da Gulbenkian.
Por que é que diz que a dança abstracta não faz sentido?
Os gestos têm que ter um significado. Tem a ver com a minha relação, desde criança, com o teatro, o cinema, a escrita. Na Gulbenkian, o Jorge Salavisa (director) aconselhava-me a ouvir a música, e eu tentei, mas ele percebeu que aquilo nunca saía bem. A música não é uma fonte de inspiração. Não gosto de a estudar, prefiro ouvi-la sem a conhecer.
Será por isso que a acusam de ser antimusical?
Em parte. Mas acho que isso era mais no início, há 25 anos.
Abriu um caminho novo para a dança contemporânea?
Não consigo chegar a tanto. Mas tenho consciência de que construí pontes para uma série de coreógrafos portugueses, e não só. No Brasil, dois anos depois de ter apresentado um espectáculo, surgiram muitas criações iguais ou parecidas com as minhas. É bom notar a nossa influência nas pessoas. Em Portugal, mostrei que é possível ir por outro lado. Quando conheci o Rafael Alvarez, ele confessou que começou a dançar depois de ter visto uma peça minha na televisão.
Tem 48 anos, o que a torna, provavelmente, na bailarina mais antiga do país. Como lida com o envelhecimento do corpo?
Quando se é coreógrafa, o confronto com o envelhecimento do corpo é uma mais valia. Tive um percurso muito desenhado, com bons mestres, que ajudaram a que eu me descobrisse. Aos 16 anos, trabalhei com um discípulo de Marcel Marceau que me ofereceu um livro com a dedicatória: "Vais ser uma grande coreógrafa". Entendi que era no limite daquilo que não conseguia fazer que poderia ser diferente. Em vez de tentar ultrapassar os meus limites, devia trabalhar o que me saía naturalmente. Sou bailarina da cinta para cima. Tenho pernas curtas, mas umas costas muito fortes.No ano passado, fui operada duas vezes e achei que era o fim.Não foi. Tratei sempre bem o meu corpo. Comecei a sair à noite aos 40 anos, a fumar aos 37.
Não dispensa cenários. Essa noção de "espectáculo" é uma herança das temporadas de ópera que fez no S. Carlos?
A ópera é fundamental na minha carreira. O primeiro impacto no S. Carlos foi o cenário, a orquestra, os bailarinos, os actores, a magia daquele teatro. Toda essa grandiosidade da ópera influenciou-me muito. Mas a minha relação com o espaço cénico tem a ver com a necessidade de me relacionar com o público de forma mais directa.Para isso uso objectos. No meu próximo trabalho, "Confidencial", aparecem centenas de objectos quotidianos, como cadeiras ou candeeiros.
Reconhece-se como uma romântica extremada?
Sinto-me muito romântica na minha vida pessoal. Sou nostálgica, diria mesmo triste. Definitivamente romântica, sim. Como criadora, tenho uma camada de qualidades na minha gestualidade que mudam as coisas. Uma vez substitui uma bailarina e o público sentiu que a peça tinha ficado mais terna, menos violenta. E isso fez-me pensar: será que os intérpretes podem trair as criações dos coreógrafos?
O que quer dizer quando diz que coreografa "por necessidade"?
Quando era pequena, o meu pai dizia que se eu queria ser bailarina tinha que ser a melhor. Mesmo que não fosse fácil. Mesmo que a competição fosse dura. Necessidade é isto, uma coisa que se cola à pele. É não saber ser de outra maneira. É aquilo que faz sentido.
"Falta coragem política no país"
"Quando decidirem dar-me alguma coisa, já cá não estou", afirma Olga Roriz, lamentando a falta de apoio do Estado, mas insistindo em manter activa a companhia que fundou .
Não. A minha companhia sobrevive com muita dificuldade. A sorte é eu ser reformada da Gulbenkian. As pessoas com quem trabalho vêm sempre em primeiro lugar. Tudo o que tenho, partilho. A vida só faz sentido assim. A minha preocupação é conseguir fazer o que quero. E, às vezes, isso pode levar o público a pensar que estamos bem. Um dia perguntaram-me: "Se a Olga não tem dinheiro, porque é que faz produções tão caras?" Porque não faria sentido não fazer o que quero. Sobrecarrego-me, mas não deixo de ser fiel ao meu percurso.
Mas o convite do Teatro Camões, em Lisboa, para a companhia Olga Roriz ocupar o espaço vai atenuar alguns problemas...
Claro. Vai colmatar um problema do espaço de ensaio e representação. Mas aquela casa é muito grande. E eles não compram espectáculos. Ficamos dependentes da bilheteira. É um risco, porque eu tenho que pagar aos técnicos, independentemente da adesão do público.
Qual é a maior necessidade da companhia neste momento?
O que eu preciso agora é megalómano. Pelo menos, para este país.Quero um teatro que seja meu e um financiamento que me permita ter um "staff" para que a companhia possa crescer e ter um elenco fixo. Para lhe poder dar a visibilidade que merece. Nós somos , apenas, cinco, e multiplicamo-nos por várias funções. Eu faço de tudo, desde cozer vestidos a receber o presidente da República.
Nada a fará abdicar da companhia que fundou há sete anos?
Nada, por causa da tal necessidade de coreografar. Quando a companhia está pior, faço solos como "Os olhos de Gulay Cabbar". Posso até ter que fazer uma pausa, mas parar, nunca. Já me aconteceu ter que pagar aos bailarinos do meu bolso. Foi difícil, mas possível. Como consegui dinheiro? Às vezes, vou lá fora fazer coreografias e pagam-me bem. Não o gasto, fica sempre guardado para quando a companhia precisa.
Nunca pensa sair do país?
Às vezes fazem-me essa pergunta. Mas este é o meu país. É aqui que faço falta. Foi aqui que aprendi tudo. Exceptuando alguns workshops, nunca fui lá fora fazer cursos. Digo isto há alguns anos, sempre a achar que as coisas vão melhorar. Daqui a bocado, quando decidirem dar-me alguma coisa, já cá não estou. O problema é não haver coragem política para banir quem não tem qualidade. Falam em descentralizar. Concordo. Mas, e a qualidade, não importa?
Marcadores: Companhia Nacional de bailado, Olga Roriz
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