terça-feira, outubro 19, 2004

José Luís Borga

'Estar na televisão não renova a Igreja,
mas dá uma achega"



As televisões disputaram-no. Ele poderia não ter sido padre, mas, assegura, "seria sempre um comunicador". José Luís Borga, o sacerdote que pôs o país a cantar "Põe a mão na mão do teu Senhor da Galileia", tem uma utopia: "Se pudesse, ninguém faria abortos". A progressiva legalização dos comportamentos sociais incomoda-o. "A homossexualidade passou de perversão a doença; e daí a opção. Qualquer dia é uma obrigação". Diz que não a julga, mas também não a entende. Como não entende o Vaticano, que desconhece se "será um mal necessário, ou um serviço preciso". Cobra 4000 euros por concerto, cachet que partilha com a comunidade."A Bíblia pede um décimo - eu dou metade".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 19 de Outubro de 2004)

As suas sucessivas aparições televisivas são uma tentativa de renovar a imagem da Igreja ou fruto de uma opção exclusivamente individual?
Não tomei a decisão de usar a televisão para passar uma imagem da Igreja. Estou perante uma oportunidade que estes meios raramente dão. E não dão a toda a gente. Deram-me a mim. Tenho a humildade de pensar que estar na televisão não renova a Igreja no sentido de ir ao essencial. Ela não fica enriquecida porque apareço; espero que não fique empobrecida. É mais uma achega.

Que leitura lhe merece a presença de três padres nos três programas da manhã? [José Cruz na TVI; Milícias na SIC]
O público alvo da manhã são pessoas reformadas, para quem a Igreja tem um peso significativo. As televisões vêem audiências e percebem o que é estar o padre Borga, ou não; estar uma cartomante, ou não. No início, houve uma certa disputa de mim. A RTP propôs-me exclusividade, e eu aceitei. As outras televisões foram ao encontro do mesmo.

Além da televisão, dá concertos. A que critério obedece a sua agenda?
Primeiro, cortando muitas horas ao sono. Segundo, dentro do possível do que me pedem, tento responder afirmativamente. Terceiro, sendo capaz de fazer entender às pessoas que não sou mendigo, nem escravo, nem dependente dessa situação. Vou porque é bom ir; nunca irei porque preciso de ir. Se me pedem para dar um espectáculo onde estão seis mil pessoas, dificilmente direi que não. Se me pedem para ir a um larzinho, onde estão meia dúzia de velhinhos, terei mais dificuldade em dar prioridade a isso. Faço uma gestão entre qualidade e quantidade. Sou prioritariamente pároco; raramente colido com a minha dimensão de responsável por uma comunidade. Este ano já fiz mais de 70 espectáculos; não me posso queixar muito.

Que destino dá aos 4000 euros que cobra por espectáculo?
Só metade do que ganho fica para mim. A Bíblia pede um décimo; eu dou metade. Nunca fui a lado nenhum para ganhar dinheiro, nem deixei de ir por não ganhar. Tento fazer uma gestão de tudo o que tenho, de forma primeira a que não viva para isso; segunda, que viva apesar disso; terceira, que haja muita gente a ganhar com isso. A minha Igreja tem sido a destinatária, porque houve obras. Se tenho ajudado tanta gente, mau seria que andasse a pedir para a minha paróquia.

Lida bem com a popularidade?
É a minha cruz. (risos) Sou bastante desconcertante. Às vezes, até fico com pena das pessoas. Reconheço que é cansativo, inoportuno, quero passar discreto e não consigo. Mas sou sobejamente grato para pensar que isso acontece porque as pessoas gostam de mim, e são gratas por aquilo que sou. Não tenho o direito de ser frio. E não me preocupa porque sou um homem livre, faço tudo às claras, ninguém depende de mim. O meu celibato dá uma boa ajuda. Lido com a simplicidade e a gratidão que isto supõe e exige. E com os pés no chão, porque tudo é efémero.

O seu protagonismo não pode ser confundido com uma certa falta de humildade que lhe é exigida?
Pode. Mas quem dirá da humildade, ou não, terá que ser a própria pessoa, e os seus amigos. Somos facilmente avaliados por gente que nem sabemos que existe, e que se acha no direito de avaliar só porque conhece uma parcela. Haver gente que fica eufórica ou angustiada porque estou na televisão, não me é particularmente incomodativo. Agora, se tenho um colega sacerdote ou bispo, isso sim. As pessoas são um bocadinho adolescentes nestas matérias: somos óptimos se os servimos; na primeira vez que dissermos que não, revêm logo o nosso estatuto. Passamos de bestial besta com muita facilidade.

Que avaliação fez da proibição do Governo ao não deixar atracar em território português, o "barco do aborto"?
O aborto é um acto desumano e desumanizante. Fazer disto uma indústria, é pior a emenda do que o soneto. A política não soube lidar com isto, e foi lamentável. Quer-se uma ordem jurídica baseada em princípios de dignidade da pessoa humana, mas só se dá tiros nos pés. Ainda bem que não houve gente da Igreja no cais a pedir para o barco não atracar; seria lamentável.

Defendia a vinda do barco?
Tanto me faz. A realidade, em Portugal, está bem pior do que no barco. Já começo a temer que se legalize a pedofilia. Desde que se faça em condições de higiene, as crianças não se queixem, tenham subsídio depois, e haja rastreio higiénico aos clientes. Já vi legalizar tanta coisa! Estamos na miséria? Citando Kierkgaard, "venham os poetas falar daquilo que é belo". Não temos que morrer todos no esterco da vida. Tenho uma utopia: se a pessoa pudesse, nunca faria aborto.

Numa altura em que se esperava que o Vaticano revisse algumas posições consideradas mais retrógradas, é emitido um documento a reprovar a homossexualidade...
Não é só a igreja que é contra a hossexualidade. Não há nenhuma religião, a não ser que depois haja interpretações pastorais, que diga que essa opção é de ordem divina. Sou da maior compreensão face à homossexualidade, mas sou, também, da maior questão perante ela. Honestamente, acho que masculino e feminino são complementares no masculino e no feminino. Esta visão tem milhares de anos, e não estará assim tão errada.

A homossexualidade não é propriamente recente...
Pois não. Passou de perversão a doença. Agora já não é doença, é opção. Qualquer dia é uma obrigação.

Ou seja, evita julgar, mas não aceita?
Se alguém me vier dizer que tem tendência homossexual, gostava de lhe dizer que está enganado. Não aceito como opção igual a outra qualquer. Tenho dificuldade em compreender. Quer mais uma perversão? Ter relações com animais. Até aqui, ainda achamos que é perversão, mas qualquer dia passa a ser natural casar com cães e gatos. Posso parecer exagerado, mas não sei se sou. Há 40 anos, se dissesse que a homossexualidade era opção, estaria a ser tão exagerado como pareço estar a ser agora. É preciso não esquecer que a sexualidade tem associada a ideia de fecundidade.

Concorda que a imensa riqueza do Vaticano pode afastar as pessoas da Igreja?
Concordo, claro. Como a minha.O poder está sempre associado a uma dimensão visível. A riqueza do Vaticano é algo que não se pode hipotecar. Fui prior no mosteiro sistersiense, numa comunidade paupérrima, em que até para mudar lâmpadas tinhamos que fazer peditórios. O IPPAR gastou lá milhões na restauração. É um património tal, que deixá-lo deteriorar-se, era um crime contra nós proprios, a Historia e a memória. O Vaticano vai vender aquilo a quem? Ao Bill Gates? Ao Estado?

O património do Vaticano não é só arquitectónico...
O que importa não é o que temos, é o que damos. O orçamento do Vaticano, em relação a cidades como Lisboa ou Alemanha, não é comparável. O serviço que presta à comunidade, a grandeza espiritual que tem, a quantidade de organismos de apoio aos mais pobres, à investigação, não tem comparação. A maior pobreza é acharmos que é mau os outros terem. Vivi num seminário, em Santarém, uma casa estupenda. Parece muito rica, mas viver lá é quase um castigo. Meu rico andarzinho no Entroncamento! Só o arranjo do telhado daquilo dava para comprar três andares iguais ao meu.

E todo o mistério que envolve o Vaticano: a moeda própria, os livros a que ninguém tem acesso, não o inquieta?
Tenho mais que fazer do que estar preocupado com o Vaticano. Não é dos sítios mais fascinantes da vida. Não sei se é um mal necessário, ou um serviço preciso. Tem muitas virtudes, mas terá também limitações. Faz parte do mistério disto tudo. Não sou admirador do Vaticano; isso não sou, até porque há muita coisa que não sei como funciona. Os que sabem não ficam muito edificados, os que não sabem passam muito bem sem isso. Pertenço ao segundo plano.

Que reacção lhe suscita o mediatismo de padres como o controverso Mário de Oliveira, autor de livros como "Fátima nunca mais"?
Gostava de ver nele um homem feliz. E lamento que a cruz dele seja esta Igreja. Concordo com algumas coisas que diz. Aliás, razão é coisa que não lhe falta. Mas acho lamentável que se faça passar por servidor da Igreja que abomina. É um fio ao qual tem conseguido ser tão fiel, durante todos estes anos, que até o admiro por isso. Honestamente, se achasse da Igreja o que ele acha, já tinha ido embora.

Ele não é caso único.
Pois não. A igreja ainda não sabe lidar bem com estes casos. Ele pode ser um doente, mas é um irmão no sacerdócio. Era talvez possível, entre os colegas, ir pondo água na fervura. Gostava de o ver mais acompanhado. Sou um espectador dele como toda a gente. Expõe-se muito. Acho que ele não é feliz. Mas, provavelmente, ele acha o mesmo de mim.

O celibato é um dossier que a igreja devia rever?
Está sempre a ser revisto, desde que foi instituído pelo próprio Jesus Cristo. É matéria que vai continuar a ser discutida. Mas será sempre um tesouro complicado de nos desfazermos. O tesouro tem sido, nestes séculos, inestimável. Não poderíamos apresentar serviços de qualidade, de testemunho, de autenticidade evangélica, sem esta opção. Mas vai sofrer alterações. O sacerdócio ministerial, até há pouco tempo, estava vedado a não celibatários; neste momento, já há diáconos permanentes que são casados. Lamento que um sacerdote que por causa do celibato deixa de exercer, não seja, pelo menos, colocado no diaconato. O celibato tem que ser uma opção da felicidade, e se alguém não é feliz porque é celibatário deve deixar de o ser. Mas não deve ser reduzido ao grau zero.

Perfil

Idade 40 anos
Trabalho Sacerdote e cantor
Família Um irmão gémeo, um irmão padre
Filme "A missão"
Música "Canção da cidade nova"
Livro "Principezinho"
Cidade Entroncamento
Qualidade Coerência
Defeito Arrogância

Confissões

Fascínio pela comunicação
"Um padre que só dá para padre, geralmente não dá para padre", defende José Luís Borga, que é padre, mas poderia "encontrar-se em muitas outras facetas, todas ligadas à comunicação". Diz que não perdeu "tudo aquilo que era capaz de fazer", mas reconhece: "Na vida, quando queremos agarrar tudo, acabamos por não agarrar nada".

Primeira missa sem o pai
Quando realizou, pela primeira vez, a Eucaristia - "o que mais me agrada fazer na vida, é ser ministro da presença de Cristo numa Comunidade" -, o pai não esteve presente. Havia sido internado. Como agora. "Foi, provavelmente, o momento mais difícil dessa missa", confessa, emocionado só com a recordação. "Estava rodeado de gente que me quer bem, mas nos momentos de maior intimidade, a ausência das pessoas que, se pudessem, estariam presentes, acaba por ser mais marcante. E dolorosa. E sei o quanto para o meu pai teria sido significativo estar ali". Padre Borga aprendeu com a ausência. "Foi uma antecâmara para a minha capacidade de ver mais longe".

Lágrima fácil. E nó na garganta
Comove-se mais do que gostaria. E surpreende-se com isso de todas as vezes. "Há pessoas que, só de me lembrar o que representam na minha vida, me põem um bocado perturbado e com um nó na garganta". Como reage à emoção? "Peço desculpa e passo à frente. Sou sobejamente racional para perceber que tenho direito aos meus sentimentos".