domingo, agosto 26, 2007

Paulo Cunha e Silva


"O Porto é uma cidade com o cérebro sequestrado"

Num encontro, pós envio da entrevista, Paulo Cunha e Silva, 45 anos, queixou-se da ‘maldade’ das perguntas. Demorou sete dias a responder. Colunista amigo, presente nesse momento que assinalava o lançamento das crónicas do programador da Porto 2001, gracejou: “Não entendo o que ele diz”. O investigador do corpo e do Porto, garante: “Não sou formal”.

[Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada na série "Farpas" do JN a 20 de Julho de 2007]

Não consigo imaginá-lo fora dessa postura invariavelmente coloquial. Há outra pessoa, porventura mais solta, além dessa?
Sou muito solto. Porventura demais. Quase o campeão da informalidade. Mas também patologicamente tímido, embora atrevido. Talvez que o resultado seja, para um observador exterior, um animal selvagem dentro de um colete de forças, dentro de uma jaula elástica adaptada à pele.

Tem medo do juízo dos outros?
Não tenho medo, mas sou sensível. Com o tempo fui ficando com a pele dura. Todos procuramos reconhecimento. Quem disser que não, mente. E o reconhecimento só pode ser dado pelos outros. Essa é porventura a nossa maior dependência. Mesmo o político com a carapaça mais espessa não se consegue livrar dessa vulnerabilidade, o juízo dos outros, a não ser que esteja disposto a perder as eleições.

O que não o mata, alimenta-o?
Até comigo o metabolismo funciona (risos). Não sei se podemos falar de um metabolismo da dor e da perda. Mas sem dúvida que todas as experiências, mesmo (sobretudo) as negativas, são constitutivas.

É mais dado à acção ou à melancolia?
Absolutamente ciclotímico. Nisso sou muito nacional. Oscilo entre períodos de euforia produtiva e abandono melancólico.

O que lhe seria mais difícil aceitar: a perda da memória ou do amor?
Mas há amor sem memória? Sem me lembrar daquilo que “fizeste” ontem?

Houellebeqc diz que "precisamos de aventura e erotismo porque temos necessidade de nos ouvir dizer que a vida é maravilhosa e excitante e, mesmo assim, chegamos a por tudo em causa". Precisa disso?
De aventura, seguramente. A aventura é o termómetro da outra vida que todos queremos viver. E de erotismo também. Ele é o momento em que a minha pele se estende pela pele do mundo. Defendo assim um panerotismo. Uma Erótica do palpável, mas também do inapreensível.

Que personagem criaria para o Second Life, se aderisse ao jogo?
Ficaria com o avatar de mim próprio, passe o narcisismo virtual.

Qual foi a sua melhor ficção na vida real?
A própria vida real. Só a aceito porque estou convencido de que se trata de uma imensa ficção. No limite de uma ficção em que nós somos simultaneamente dramaturgos, encenadores e actores. Se assim não fosse isto seria insuportável.

O que move alguém com aversão ao sangue a licenciar-se em medicina?
Mas eu gosto de sangue! Atenção, não sou vampiro, mas é um dos meus tecidos favoritos. É o nosso verdadeiro underware. Até já escrevi sobre ele (uma afirmação irritante que uso para desmobilizar adversários).

Costuma automedicar-se?
Sempre que possível. Sou um doente clinicamente incorrecto.

O que lhe é mais indispensável: TV Cabo, telemóvel ou Internet?
Telemóvel. Transformou-se, sem eu dar por isso, numa prótese inalienável. Fico disfuncional quando ele não funciona.

Em Portugal as pessoas obtêm lugares consoante a exposição que têm?
Nem isso. Portugal é um país por onde os princípios do determinismo e da causalidade não passaram: tudo pode acontecer sem se saber porquê. Toda a gente pode ser tudo, sobretudo quando tem qualificações para ser coisa nenhuma.

Há falta de imaginação, no Porto, para a nomeação de cargos relevantes?
Neste momento há falta de imaginação no Porto para o que quer que seja. É uma cidade com o cérebro sequestrado. Sofreu uma lobotomia e parece que ninguém deu por nada. Não gosto da ideia de cargo, é muito pesada.

Que relação tem hoje com Isabel Pires de Lima?
Nenhuma. Mas não posso deixar de aplaudir a sua eficácia no desmantelamento do Ministério da Cultura. Não teria sido melhor se Sócrates lhe tivesse pedido “Para Acabar de Vez com a Cultura”. Nem Santana Lopes (enquanto SEC) conseguiu tal proeza.

"A ambição embriaga mais do que a glória"?
São duas drogas muito aditivas. Mas o mundo não avança sem a primeira nem relaxa sem a segunda.

O Alentejo é o lugar a que volta sempre ou só o lugar de onde saiu?
É o lugar de onde saí com um ano de idade. A vida de magistrado (pai) era uma vida cigana. Mas é um lugar onde me apetece voltar quando preciso de vistas largas.

No cinema, prefere Almodôvar ou Oliveira?
Gosto muito dos dois. Formalmente muito diferentes, há, todavia, em ambos uma humanidade radical. São dois mestres absolutos da ironia enquanto sistema de dissecação do humano. A velocidade de Almodôvar e a imobilidade de Oliveira são estratégias ao serviço do mesmo objectivo: fazer um mapa da alma.

Tem em comum com David Cronenberg o corpo como objecto de estudo. Se fosse o cineasta, de que forma apresentaria o efeito do tempo no seu?
Curiosamente, no meio dos meus 45 anos, sou uma pessoa pacificada com o envelhecimento, mesmo que viva no seio de uma cultura que celebra a juventude. Pensar o corpo ajudou-me a conviver melhor com ele. Não gostaria de sofrer um “crash”, nem pediria ajuda aos “irmãos inseparáveis”. O tempo não se vê se não acelerarmos as suas consequências, é assim um dos objectos mais infilmáveis. Só vemos o movimento, como seu efeito secundário. Por isso filmar-me-ia em trânsito com uma câmara, não apontada para trás (wenderiana), mas apontada para frente, e o meu tempo seria o tempo que há-de vir.

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