quinta-feira, setembro 13, 2007

Gonçalo Cadilhe


“Sou um Dom Quixote pulverizado de cinismo”

Foi contactado por SMS, respondeu por email, no ‘smog’ das Filipinas. Gonçalo Cadilhe, 39 anos, desistiu de picar o ponto. É bem capaz de ser um dos portugueses mais invejados de hoje: a sua vida é viajar e escrever sobre o que vê. Prepara agora um projecto literário sobre Fernão de Magalhães.

[Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada a 3 de Agosto na série Farpas do Jornal de Notícias]

Está nas Filipinas. Quer descrever-me o cenário exacto que o rodeia?
É o típico cenário exótico, oriental e pitoresco que todos imaginamos serem as Filipinas: a brisa, a humidade, as palmeiras e uma cortina de smog que não me permite sequer ver se posso ou não atravessar agora a avenida

Em Fevereiro foram encontrados pregos dentro de centenas de bananas Filipinas. Trincou alguma por aí?
Não, nenhum problema aqui. Todas as bananas aqui à venda são importadas do Equador. As bananas das Filipinas, essas são naturalmente exportadas para o Equador. Ah, esquecia-me de dizer: faz parte do esquema de economias de escala e redução de custos da Chiquita. Assim anda a deseconomia mundial...

Já decidiu para onde seguirá depois?
Sigo para Guam, na Micronésia. Ando a visitar os lugares mais significativos da vida de Fernão de Magalhães para um projecto literário.

Sente que descobriu o verdadeiro ovo de Colombo ao conseguir viver do prazer de viajar e depois contar?
Neste momento, e já há vários meses, ando mais preocupado com o ovo de Magalhães.

Como é feita a contabilidade do seu copo de água: meio cheio ou meio vazio? Conta os países que já conheceu ou os que lhe falta conhecer?
O meu copo anda sempre vazio. Parafraseando (de memória) o poema do Caetano: minha sede não é qualquer copo de água que mata/ minha sede é uma sede que é a sede do próprio mar.

A viagem é o viajante?
A viagem é o espelho do viajante, cada paisagem mostra-lhe a própria alma que tem.

Quando está fora, faz questão de manter-se informado sobre Portugal ou actualiza-se só quando regressa?
Faço questão de manter-me desactualizado, à margem mesmo. Quando estou por cá é mais fácil, claro, a natural repulsão por todas essas notícias mesquinhas e frívolas, que não interessam para nada e que no dia seguinte já ninguém recorda, mantém-me naturalmente as defesas alçadas. Viajando é que fica mais difícil resistir a saber coisas, porque as saudades amolecem.

Conhece tão bem Portugal como conhece parte do mundo?
Espero bem que não. Seria insultar o resto do mundo.

Dá consigo a ter mais saudades de casa ou dos lugares onde não voltará?
Saudades só do futuro, por favor.

Teve pena que o Infante D. Henrique não fosse considerado o maior dos “Grande Portugueses”?
Não, pena nenhuma. Era só um programa de entretenimento da televisão.

Estar permanentemente em contacto com outras culturas abala as suas convicções religiosas, políticas e outras?
Felizmente, sim. Mas Bush perdeu um potencial defensor da sua política de terra e carne queimada.

Acha que a sua legião de fãs fica a dever-se mais às viagens ou à coragem de abdicar de uma vida sedentária?
Creio que a minha popularidade se deve à minha participação regular nas festas do jet set do Agosto algarvio.

Somos, como alguém escreveu num blog a propósito do seu livro, “todos bastante parecidos quando limpamos o pó das aparências”?
Diferentes q.b. para valer a pena andar pelo mundo a procurar as semelhanças.

Lida bem com o mal que vê pelo mundo ou fica a martelar-lhe na cabeça?
Sou um D. Quixote pulverizado de cinismo.

Viajar pode ser, também, uma prisão?
A prisão não é a viagem, mas sim, parafraseando a Yourcenar, a cela redonda e azul por onde ela se desenrola.

Escreveu em “A lua pode esperar”: “Temos a idade europeia driblada, do matrimónio adiado, da paternidade esquivada (…) cocktail que mistura conhecimento e irresponsabilidade, cepticismo antigo e leveza amoral, vida fácil e experiência de vida”. Viajar é uma forma consciente de contornar o que para muitos parece uma inevitabilidade?
Não tem que ver com viajar, mas com optar por uma vida fácil, sem responsabilidades, num mundo orientado para valorizar tudo o que é ‘fun’, ‘light’, ‘easy’, inconsequente. E precisamente logo agora que temos todas as ferramentas culturais e toda a informação para podermos tomar decisões e opções de vida dignas, profundas, responsáveis. Que paradoxo.

Ainda leva a prancha de surf e a guitarra para onde quer que vá?
Umas vezes a guitarra, outras a prancha, por vezes as duas e então é uma festa.

Vive um dia de cada vez ou sente a pressão do tempo que nunca chega?
Uma forma exclui a outra? Sempre pensei que fossem causa e consequência.

Quando editou “Volta ao mundo por terra e mar”, em 2004, houve muito quem se queixasse de não encontrar crónicas mas apenas imagens. Estas retaliações surpreenderam-no?
Penso que os protestos se resolveram, poucos meses depois, com a publicação do “Planisfério Pessoal”, o equivalente em texto dessas imagens.

Acusam-no de um certo deslumbramento perante a miséria alheia e de a romancear. Quer defender-se?
Não quero defender-me. Deve ser uma frase minha qualquer, fora de contexto, que levou alguém a essa conclusão.

Acha que as pessoas esperam de si, também, um olhar crítico, quase político?
Sinceramente, não sei o que as pessoas esperam de mim. Já me custa bastante saber o que eu espero de mim. Mas se o que essas pessoas esperam de mim não se concretizar, então significa que formaram uma ideia errada de mim, vá-se lá saber porquê.

Resiste aos gadgets que encontra em cada país ou a tecnologia não o fascina?
Não resisto ao que me pode ser útil para melhorar a minha qualidade de vida. Creio que tal como qualquer outro ser humano...

Um relato vale mais do que mil imagens?
Se for escrito pelo Saramago, sim.

Em “O canto nómada”, Bruce Chatwin escreveu: “Tive o pressentimento de que a fase ‘andarilha’ da minha vida podia estar a chegar ao fim. Tive a sensação de que, antes de ser contaminado pelo mal-estar do sedentarismo, tinha de voltar a abrir este bloco-notas. Tinha de pôr no papel um apanhado das ideias, citações e encontros que me tinham divertido e obcecado; e que, segundo esperava, esclareceriam o que, para mim, é a questão das questões: a natureza do desassossego humano”. Já sentiu isto, que a sua fase de andarilho podia estar a chegar ao fim?
Não, não senti isso - nem sequer penso numa vida dividida em “fases”. A minha vida tem decorrido de uma forma muito fluida e encadeada, não tem sido uma sucessão de “fases”. Talvez uma sucessão de compassos, numa partitura para improvisação por terra e mar…

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